segunda-feira, 29 de outubro de 2012

do grego, metamórphosis

E imaginando que todos acompanhavam ansiosos os seus esforços, mordeu a chave como um louco, com todas as forças que ainda podia reunir. À medida que a chave ia girando, ele dançava em torno da fechadura; agora mantinha-se em pé só com o auxílio da boca e, conforme a necessidade, ficava pendurado na chave ou a empurrava outra vez para baixo com todo o peso do seu corpo. O som mais claro da fechadura que enfim retrocedia literalmente despertou Gregor. 


O rosto dela estava inclinado para o lado, seus olhares seguiam perscrutadores e tristes as linhas da partitura. Gregor rastejou mais um trecho à frente, mantendo o corpo rente ao chão, para se possível captar os seus olhos. Era ele um animal, já que a música o comovia tanto? Era como se lhe abrisse o caminho para o alimento almejado e desconhecido.


Você simplesmente precisa se livrar do pensamento de que é Gregor. Nossa verdadeira infelicidade é termos acreditado nisso até agora. Mas como é que pode ser Gregor? Se fosse Gregor, ele teria há muito tempo compreendido que o convívio de seres humanos com um bicho assim não é possível e teria ido embora voluntariamente. 


Trechos de A metamorfose, de Franz Kafka.
Imagens de uma campanha chamada "Make your own movie: read a book", que sugere A metamorfose em terror, no estilo Bollywood e na forma de mangá, respectivamente.


domingo, 28 de outubro de 2012

domingo pede cachimbo com sorriso


Geralmente, meus domingos são regados a Alice. Um banho de cor e de afeto que saem do regador, desse regador iluminado. Arco-íris de pura alegria que chama a minha semana para o ânimo e a disposição, pois eu preciso de. Acredito que ela já tenha percebido que não há maravilhas neste mundo cruel em que vivemos. Alice sabe que, embora seja dura a verdade, ela tanto bate até que fura, e nós podemos sorrir no domingo, cuja propriedade talvez seja fictícia. Num domingo descansa-se e descascam-se os dias úteis. O domingo é sagrado, dizem, e dorme-se o que faltou. O começo da semana penosa, quando a areia fina bate no sino, e Alice pronuncia suas palavras à moda do Cebolinha. O domingo é um momento de transfusão de energias entre Alice e eu, nesse sentido – dela pra mim.  Porque no país dela eu quero morar eternamente, onde todas as coisas são mais simples do que imaginamos. Quer dizer, no país da imaginação de Alice, as maravilhas podem ser detalhes pequenos de um domingo, um domingo que é, aparentemente, como qualquer outro. Mas, em se tratando de domingo, a presença da felicidade, simples como ela deve ser, é sempre certa com Alice.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

a palavra da palavra queimada (re)nasce


Foi de um lapso que nasceu o chá de chama. Perdi as informações da conta anterior de um blog que mantinha, chamado Ziguezaguear. Ele surgiu em 2009 e agora flutua na rede sem o meu controle, pois não há como acessá-lo. Um sonho não percebido; minha memória já me deixando na mão. É verdade que o blog vivia mais de hiatos do que de grandes momentos de inspiração e criatividade. Então, por que voltar? Não sei, mas volto. Uma explicação para o título do novo blog? Não darei, porque não há. Uma certeza: não se trata de ser ou não ser como uma fênix. Concluí que não sou eu que queimo. São as palavras que insistem em entrar em autocombustão. E não prometo nada, nem tudo, porque sei que essa história de zigue-zague já faz parte disso que é a escrita e ela arde, meus amigos, como fogo vivo em chamas. Agarro-me nisso. Se você for ler, me chama?

todos os blogs, o fogo

"Ah", diz Roland acendendo um fósforo. Jeanne ouve tranquilamente o ruído, é como se visse o rosto de Roland enquanto aspira a fumaça, encostando-se um pouco para trás, com os olhos semicerrados. Um rio de malhas brilhantes parece pular das mãos do gigante preto e Marco tem o tempo exato para esquivar o corpo à rede. Em outras ocasiões - o procônsul sabe, e vira a cabeça para que somente Irene o veja sorrir - aproveitou esse mínimo instante, ponto fraco de todo reciário, para bloquear com o escudo a ameaça do longo tridente e jogar-se firme, com um movimento fulgurante, em direção ao peito descoberto. Mas Marco mantém-se fora da distância, as pernas curvadas, a ponto de pular, enquanto o núbio recolhe rapidamente a rede e prepara novo ataque. "Ele está perdido", pensa Irene sem olhar para o procônsul que escolhe uns doces da bandeja que Urânia lhe oferece. (De Todos os fogos, o fogo. Julio Cortázar)